Artigo - Indícios de fraude e desvio patrimonial praticados por administradores antes do pedido de Recuperação Judicial: afastamento é possibilidade para preservar continuidade da empresa


Quando uma empresa apresenta um pedido de Recuperação Judicial entende-se que administradores, sócios e acionistas concluíram e acordaram que este é o melhor caminho para sanar o endividamento da mesma, mantendo as operações. Uma vez aprovado o plano de recuperação, é comum que os administradores sejam mantidos na condução da empresa. Afinal, em tese, são eles os que mais conhecem a operação, seus desafios e podem, mais facilmente, vislumbrar possíveis caminhos para reverter a situação desfavorável.

A única ‘diferença’ que passa a existir nesta nova realidade é que os passos do administrador serão acompanhados e monitorados por um comitê de credores, que precisará atestar se realmente estão sendo feitos os esforços necessários para que a empresa efetivamente se recupere e consiga, assim, quitar suas pendências financeiras. 

Outro ‘incômodo’ é que os administradores mantidos na operação são obrigados a apresentar seus bens particulares – e nem todos se sentem confortáveis com tal exposição. Por isso, já existem deferimentos que garantiram sigilo em alguns processos de recuperação judicial.

Blindagem patrimonial - O que se observa, em algumas situações, é que muitos administradores e sócios de empresas endividadas promovem verdadeiras ‘blindagens patrimoniais’ antes de entrar com o pedido de recuperação judicial.

Muitos credores têm se esforçado em coletar indícios que possam provar estas ilegalidades, a fim de pedir o afastamento de tais administradores, mas não se trata de um processo fácil e ágil.

Esta possibilidade tem amparo legal. De acordo com a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, durante o procedimento, os administradores da empresa em recuperação podem ser afastados nas seguintes condições: 

Art. 64.  I – houver sido condenado em sentença penal transitada em julgado por crime cometido em recuperação judicial ou falência anteriores ou por crime contra o patrimônio, a economia popular ou a ordem econômica previstos na legislação vigente;

        II – houver indícios veementes de ter cometido crime previsto nesta Lei;

        III – houver agido com dolo, simulação ou fraude contra os interesses de seus credores;

        IV – houver praticado qualquer das seguintes condutas:

        a) efetuar gastos pessoais manifestamente excessivos em relação a sua situação patrimonial;

        b) efetuar despesas injustificáveis por sua natureza ou vulto, em relação ao capital ou gênero do negócio, ao movimento das operações e a outras circunstâncias análogas;

        c) descapitalizar injustificadamente a empresa ou realizar operações prejudiciais ao seu funcionamento regular;

        d) simular ou omitir créditos ao apresentar a relação de que trata o inciso III do caput do art. 51 desta Lei, sem relevante razão de direito ou amparo de decisão judicial;

        V – negar-se a prestar informações solicitadas pelo administrador judicial ou pelos demais membros do Comitê;

        VI – tiver seu afastamento previsto no plano de recuperação judicial.

Caso os credores desconfiem de conduta inadequada por parte dos administradores, é preciso acionar a Justiça, que nomeia auditores para que promovam uma análise criteriosa, a fim de comprovar – ou não - tais indícios. Tal conduta tem previsão na Lei 11.101/2005, em seu artigo 22, inciso I, alínea h e tem base, ainda, no Princípio da Transparência.  Se neste processo for constatada alguma irregularidade, o Juiz aciona a empresa para que apresente novos documentos ou faça os esclarecimentos necessários. O credor só tem acesso às informações que constam nos autos e precisa esperar, pacientemente, este “ir e vir”. Tanta cautela tem justificativa: a justiça só afasta um administrador quando se comprovam motivos muito relevantes.

Caso real - Foi o que aconteceu no ano passado com a Usina São Fernando, que pertence à família do pecuarista José Carlos Bumlai, um dos réus já condenados na Operação Lava Jato. No primeiro semestre de 2017, a empresa entrou com o pedido de Recuperação Judicial. O plano proposto foi reduzir a dívida de R$ 1,3 bilhão para R$ 950 milhões, o que exigiria descontos concedidos pelos credores sem garantia real. Dos R$ 950 milhões, R$ 530 milhões seriam de dívidas com bancos - entre os principais credores estão Banco do Brasil, BNDES e BNP Paribas. As instituições receberiam 16% do valor devido à vista e o restante seria pago em 20 anos, com correção pela TJLP e mais 1,4% ao ano.

Mas no meio do caminho, houve a condenação de Bumlai. A empresa não conseguiu cumprir o plano aprovado. A Justiça decretou a falência da São Fernando em junho. Dois filhos do pecuarista, administradores da usina e de outras quatro empresas da família, foram afastados. E a administração judicial passou para mãos da empresa VCP.

Os credores, agora, esperam a venda, por meio de um leilão, de todo o ativo da usina – que inclui máquinas, frota, parque industrial e até as lavouras de cana.

Neste mês de fevereiro, no dia 22 serão abertas pelo juiz as propostas que serão apresentadas pelos interessados em envelopes lacrados. Em seguida, em Assembleia Geral marcada para os dias 1 e 12 de março, os credores poderão deliberar sobre tais propostas.

Enquanto isso, a administradora da massa falida informou, por meio da imprensa, que vem encontrando dificuldades para seguir com a operação.

Outro caso amplamente divulgado pela imprensa foi a da Seara Agroindustrial, sediada em Sertanópolis, no Paraná, que negocia soja e milho. No início de 2017, a empresa entrou com pedido de Recuperação Judicial declarando uma dívida de R$ 2,1 bilhões de reais.  Entre os credores está a cooperativa norte-americana CHS.

Em julho, uma decisão da Justiça travou o processo: credores alegaram que a empresa havia falsificado informações financeiras, o que deu início a uma perícia contábil. Um deles pediu o afastamento dos administradores. Só agora, no final de janeiro, é que a empresa conseguiu a permissão da Justiça para dar continuidade à Recuperação Judicial. O pedido de afastamento dos administradores ainda aguarda análise do juiz.

Recentemente, também foram afastados da condução da empresa os administradores da Viação Itapemirim S/A e seus sócios. De acordo com a decisão judicial, embora as recuperandas aleguem dificuldades financeiras para compra de matéria-prima  (óleo diesel para operação das linhas de ônibus) e pagamento de funcionários, realizaram contrato de câmbio e pagamento de US$ 15 milhões para aquisição de 15 aeronaves, em “nítida prática de descapitalização da empresa de forma injustificada”, colocando em risco a atividade-fim das empresas. Além disso, as recuperandas teriam deixado de apresentar informações solicitadas pelo administrador e de comprovar o recebimento de serviços de empresa de serviços de tecnologia que contrataram.

O juiz nomeou o administrador judicial como gestor até a deliberação da Assembleia Geral de Credores, designada para 21 e 28 de março.

Análise – Em caso de afastamento dos administradores de uma empresa que está em processo de Recuperação Judicial, o juiz nomeia um novo administrador, que também pode ser indicado pelo Comitê de Credores. Mas a grande questão, já adiantada neste artigo, é que este processo é bastante demorado e pode pôr em risco o patrimônio e a continuidade da empresa. Obviamente, quem pode sair perdendo são os credores, colaboradores e fornecedores, entre outros afetados pelo endividamento.

Empresas que estão pensando em recorrer à recuperação judicial precisam ter em mente alguns aspectos de extrema importância. O primeiro deles é que o pedido precisa ser apresentado de forma adequada, com tudo o que é exigido de forma transparente. Omissões ou alteração de dados pode aumentar o risco de falência – e aí, os administradores serão responsabilizados e terão de prestar as devidas contas à justiça. Certamente, serão afastados da operação do negócio – o que prejudica ainda mais a liquidez e as chances de recuperar as perdas.

Os administradores precisam averiguar tudo o que envolve a sua sociedade – os atos praticados, o cumprimento ou não das normas societárias, os problemas a resolver e os riscos envolvidos. E, caso algo necessite de intervenção, que tudo seja resolvido antes do pedido, para que ele não seja negado ou sofra problemas que prolonguem demais o processo ou também exija afastamento dos administradores. 

Por outro lado, os credores  e seus representantes precisam adotar uma conduta mais ativa – caso desconfiem de alguma irregularidade por parte da empresa que está em Recuperação Judicial – a fim de dar ao juiz subsídios necessários para seguir com pedidos de perícia ou afastamento dos administradores. É preciso agir com rapidez, não simplesmente repassando as informações que recebe, mas sim, analisá-las e acompanhar o que está acontecendo na empresa. Não pode passivamente as informações que são disponibilizadas na ação, mas sim, ter uma postura crítica e questionadora, para evitar maiores prejuízos a todos que acreditaram no negócio e nele investiram.

Andréia Viola é advogada e sócia do escritório Tardioli Lima Advogados.